sexta-feira, 29 de junho de 2007

Essa crônica de Fábio Reynol, diz tudo. Atos covardemente executados por "seres-humanos", que sempre tiveram do bom e do melhor e que se julgam melhor do que os outros. É triste saber que a justiça é falha e que tem meios para que esses pilantras se safem das responsabilidades, cabivéis para esses mostros.
Será que dias melhores viram?



Tristes crônicas de um país sem graça
por Fábio Reynol
1997
Era uma noite quente de abril quando cinco estudantes bem alimentados e educados sob os auspícios da fina flor da sociedade brasiliense se cansaram de seus videogames e resolveram sair às ruas à caça de brinquedos mais emocionantes. Os mimos dados por papai e mamãe não mais satisfaziam os impulsos desses meninos sapecas e cheios de energia.
Um deles ofereceu o carro – outro brinquedinho patrocinado por papai – e os demais embarcaram. Não demorou para a capital federal lhes apresentar uma diversão digna de gente de alta estirpe. Avistaram uma construção pública que lhes era completamente estranha. Sabiam que chamavam aquilo de "ponto de ônibus", para eles algo absolutamente inútil. Como podem gastar dinheiro público com coisas assim? Pensavam. Aquilo só servia para oferecer abrigo a quem se utilizava do transporte público, outro conceito que eles não conheciam nem de perto. Ademais, nunca se imaginaram colocando seus abonados buzanfãs tratados a talquinho italiano num banco de concreto tão nojento.
Naquela noite estrelada, eles descobriram que o dito equipamento público tinha outra função que era muito mais nociva à sociedade dos meninos educados. O ponto também servia de abrigo a indigentes que, como o próprio nome diz, são menos que gente. Essa espécie se enquadra numa categoria entre os cachorros e os ratos, uma vez que muitos cães encontram abrigos quentes e sociedades que os protegem e os ratos se escondem nos esgotos para não se exporem em pontos de ônibus. Imagine a indignação experimentada pelos rapazes ao encontrar naquela parada de ônibus um desses indivíduos que emporcalhavam a cidade com a própria existência.
Numa atitude patriótica e de cunho sócio-saneador, o grupo que estudou nas mais caras escolas da cidade decidiu cauterizar aquele cancro social. Imbuídos desse nobre dever cívico, espalharam combustível o mais uniformemente possível sobre aquela subpessoa que ousara nascer num mundo muito mais educado do que ela. Riscaram um fósforo e observaram com atenção (como convém aos que conhecem o método científico) como se comportava o fogo ao queimar um material tão vil e de tão pouca serventia. Satisfeitos, voltaram para casa com a sensação do dever cumprido e admirados com a própria capacidade de unir prazeres e obrigações. Dormiram tranqüilos.
No dia seguinte, o mundo desabou sobre suas iluminadas e endinheiradas cabecinhas. Só metade de sua contribuição à sociedade havia se completado. O alvo tinha sido eliminado, é certo, só que ele não era um indigente, mas um índio o que o colocava numa categoria ligeiramente superior aos moradores de rua, ainda que não gozasse do status de "gente". Claro que além do amparo dos poderosos papais que vieram em seu socorro, havia também a eloqüente justificativa que pesou em seu favor: "Foi mal! Pensamos que fosse um mendigo!" A "Justiça", que por cinismo ou deboche gosta de usar esse nome no Brasil, nem considerou homicídio, preferiu classificar a estripulia como "agressão física". Afinal, o que matou o índio foram as queimaduras não o ato dos marotos.
Quatro passaram pouco tempo em pseudo-prisões de onde saíam para tomar cerveja e fazer faculdade (afinal eram educados!). Desde 2004, estão sob liberdade condicional, ou seja, condicionada a que não cometam mais diabruras nem gestos de crianças mal-educadas. O quinto nem foi incomodado porque era menor (ops!) criança!

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